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É que eu nunca dei trabalho

  • Foto do escritor: Yilan Ruh
    Yilan Ruh
  • 1 de ago. de 2024
  • 5 min de leitura



Toda vez que marco uma visita à minha mãe ela me pergunta o que eu quero para comer. Sempre digo que não quero nada, que ela não precisa se preocupar comigo. Que "não esquente a cabeça". Entretanto, sempre que chego, há uma bolsa de mamão, banana e, se for época, de mangas à minha espera. Ocasionalmente ela também me prepara os doces que mais amo, que me rendem chacota de "velha": casca de laranja, abóbora com coco, figo em calda, mamão ralado e outras delícias. Tenho aprendido a aceitar esse cuidado sem tanto constrangimento. Tenho feito um esforço de receber o esforço.

Minha mãe me disse várias vezes que eu nunca dei trabalho. Esse elogio sempre me doeu como uma bofetada. Dia desses, me confessou que "eu sou a filha que deu certo". Eu colecionei medalhas, certificados e prêmios, que dava à ela como lembrança, ainda que ela nunca tenha me mandado ler um livro. Estudei até o fim do ensino médio com laptops que ganhei em provas do estado. A única vez em que a minha mãe foi à uma reunião de escola foi por ameaça de chamada do conselho tutelar, já que ela jamais comparecia na escola, se não para receber os meus prêmios. E na minha 1ª série, um ano após aprender a escrever, recebi uma reprimenda da minha professora por assinar por minha mãe o "ciente" no fim das lições, mesmo dizendo que a minha mãe pediu que eu assinasse. Não a culpo por isso. Ela estava ocupada demais colocando comida na mesa para cuidar de mim. E eu preocupada demais com ela para permitir que ela se preocupasse comigo. Preocupada demais para pedir ajuda para o que quer que fosse.

Minha mãe admirava a minha independência. Conta para as pessoas que eu nunca deixei que ela me desse comida na boca. Que eu fazia birra para comer sozinha (e há fotos disso). Nunca pegou um boletim meu. Nunca olhou uma tarefa de casa. Ela sabia que não precisava se preocupar que eu fizesse o que deveria ser feito. Desde os 5 escuto que sou madura demais para minha idade. Estranho, porque lembro de olhar para minha mãe de igual para igual, enquanto via as outras crianças como crianças. Mas jamais me senti como elas. Por mais que eu tentasse imitá-las, sentia que algo me escapava.

Eu não sei pedir ajuda. É que eu nunca dei trabalho. A ideia de depender de quem quer que seja, para o que for, é inaceitável. Já me levei sozinha para fazer exame de corpo e delito após ser vítima de violência, já me levei para a emergência desmaiando e com falta de ar. Só contei para minha família os horrores que me aconteceram quando o oficial de justiça bateu na minha porta, me intimando a depor. Me recuso a ser vista com piedade, a ser colocada nessa posição de "coitada". Já ouvi tantas vezes que sou orgulhosa que já perdi as contas. Eu nunca peço nada, eu nunca incomodo ninguém. Eu me basto. Eu sou carne, mas me fiz pedra. Quando a vida me bate, eu me bato uma segunda vez, para lembrar que o que o outro fez comigo foi porque eu permiti. Você pode até me ver sangrando, mas nunca vai me ver chorar.

Eu ajo como se não precisasse de cuidado e tenho a audácia de sofrer quando me tratam de modo descuidado. Mesmo sabendo que iria embora assim que pedisse. Se tenho que pedir, eu não quero. Me recuso a solicitar o que não me seja oferecido de forma livre e espontânea. Não me faço carcereira do outro; não me coloco na posição de senhora da vontade alheia para que não seja colocada na posição de escrava. Se eu preciso de algo, me ofereço. Se eu não tenho como imediatamente, eu crio as condições para me oferecer. Não terceirizo a minha necessidade. Não entro em conflitos, não faço exigências. Se não me basta, eu me levanto e vou embora. Não levo e não deixo nada.

Ando indo embora demais de espaços em que sequer permaneci. Como a gente vai embora de espaços onde nunca sentiu que esteve? Me basto tanto que tudo me parece insuficiente. Estou cheia de mim, mas nada me transborda. No meio da semana eu escolho quem vou chamar pra foder no fim de semana, rezando para que algum deus profano me oferte um sexo decente para que eu não tenha gastado perfume, hidratante e maquiagem quando poderia estar no meu lençol de cetim com o meu vibrador que tem 36 combinações e a garantia de um orgasmo.

É que eu ando cansada de mergulhar em piscinas quando, dentro de mim, desaguam oceanos. Cansada de quem quer ser conhecido, mas não conhecer. Cansada de nunca tocar os rostos embaixo das máscaras. Cansada de quem exige entrega enquanto doa migalhas. Cansada de quem não fode, mas não sai de cima, e fica como um cão, à espera que lhe seja oferecido o osso. Eu quero naufragar em paixão. Quero encher os meus pulmões até sufocar. Quero o desespero, a obsessão, a falta, o medo da perda, a instabilidade, a intensidade. Eu quero todo o descontrole que não existe na minha vida. Eu quero o que me faça perder o controle.

Hoje eu mandei mensagem para minha mãe. Lhe pedi que fizesse meu doce favorito: abóbora com coco. Sei que eu poderia comprar o doce ou pegar uma receita na internet e tentar fazê-lo, mas eu queria o doce dela, o cuidado dela, o esforço dela. Curioso, porque ela me disse que já faria de qualquer forma. Hoje eu pedi cuidado.

Não vou chamar ninguém para sair. Se tenho que decidir programas, pesquisar lugares e combinar horários, eu vou sozinha. Hoje eu escolho não fazer esforço. Me recuso a me fazer menina, me recuso a performar uma fragilidade que não existe, uma infantilidade transvestida de feminilidade. Me recuso a performar insegurança e baixa autoestima para estar com alguém que só se sente seguro ao lado de uma mulher insegura. Me recuso a estar em espaços em que a minha segurança, em que eu estar preenchida de mim ao invés do outro, intimida e faz dos homens, meninos. Eu me criei no inferno e saí viva.

  Terça Ele me mandou mensagem. Sequer tinha o seu número salvo. O número, bem como o histórico de chamadas, de mensagens em redes sociais e todas as fotos juntos foram de ralo. Pensei se deveria respondê-lo. Não senti interesse, mas senti curiosidade em saber o motivo do contato. Era um áudio dizendo que sentiu o meu cheiro no carro, que é único, inesquecível. Seca, lhe respondi que vende na Boticário. Da última vez em estive com Ele, disse que tentei odiá-lo. Ele me pediu que não fizesse isso, porque não era o que ele sentia por mim. Não respondi. Acho que ele não entendeu que o que eu queria dizer era que eu queria sentir qualquer coisa por ele, mesmo que fosse ódio. Nosso amor foi psicose e o surto passou. Fodemos pela primeira vez e pela última, porque com ele eu fazia amor. Mas eu não sei amar meninos...

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