Se filho da puta voasse
- Yilan Ruh
- 4 de jun.
- 3 min de leitura

Se filho da puta voasse, não dava pra ver o céu. Ouvi essa frase de um paciente e vira e mexe ela me volta. Me assusta a capacidade que desenvolvi de abrir um sorriso toda vez que alguém tenta me foder e pensar "filho duma puta, tá achando que minha vida é picadeiro". Mas aí me lembro de uma sabedoria popular que aprendi com outra paciente, que é uma querida (não ironicamente): eu quero mais é que o mundo queime pra eu comer piranha assada. Nunca comi piranha assada, mas minha vida se tornou mais fácil quando admiti o quanto eu gostaria de tocar fogo em umas piranhas.
Sempre me surpreendo com como a gente, enquanto gente, tende a cair nas aparências, nas primeiras impressões. Toda vez que alguém me lança um "ain, você é tão calminha, tão fofinha" eu já dou meu sorriso amarelo e rezo em pensamento para que o deus que protege as pessoas com anos e anos de raiva acumulada não permita que esse ser tente tirar uma com a minha cara. Minha calma vem da capacidade de controlar o meu ódio, não da ausência dele. Eu tô puta com tudo, vinte e quatro horas do meu dia. Só que meu ódio é frio. Me revolta tudo o que tem de errado e a incapacidade de causar qualquer tipo de mudança que tenha um impacto realmente significativo. E eu nem queria que a vida fosse um morango, mas um abacaxi enfiado em um orifício apertado qualquer é uma sacanagem.
A real é que eu tô de saco cheio dessa porra toda, mas hoje eu me permito admitir. De saco cheio de gente falando de sustentabilidade distribuindo fruta em copo plástico, com tampa de plástico e colher de plástico. De politicagem e masturbação intelectual transvestida de altruísmo, solidariedade e políticas públicas. De sorrisos e abraços passivo agressivos. De gente que valoriza muito o meu trabalho me convidando a trabalhar de graça. De homem que nem sabe o que eu faço falando o quanto admira a minha determinação e inteligência na tentativa de abaixar minha calcinha. E eu nem terminei o caralho da minha especialização e já tem advogado porta de cadeia de conversinha.
Desde que eu me entendo por gente, vejo tudo cinza. E por mais desconfortável que seja, a vida se tornou menos dolorida desde que parei de pintar cores inexistentes. Aprendi, com muito custo, que o cinza tem as suas próprias tonalidades e muitas delas são bonitas. Eu vim do bueiro, mas me recuso a ser mais uma jogando a minha vida no lixo com pornografia, fast-food, tiktok e tigrinho.
A gente custa a entender: a vida pode ser mais que tapar buracos, mas abrir e fechar buracos faz parte do processo de construção/reconstrução. Aceitar o vazio é saída possível pra liberdade, mas se preencher de mundo é essencial pra se reconhecer "eu" enquanto só. Vazio é espaço de criação, de construção de sentido, de potência de ser, mas essa mesma ânsia de fazer cessar o vazio e o tédio, muitas vezes, nos desloca de nós mesmos. Jovem é estúpido. Eu sou, você é, nossos pais foram. Não é à toa que a maioria toca o puteiro, cai em uma culpa insuportável depois de uma reflexão moral profunda e busca consolo na religião como uma tentativa de sustentar o peso de suas próprias ações.
Tô planejando a mudança pro meu canto. E engraçado: nossa casa é um reflexo de nós mesmos. Percebi que o verniz, o brilho, o colorido, andam aversivos. Eu gosto mesmo é do fosco, do cinza, do cimento. De admitir que eu sou tão capaz de chamar um gostoso qualquer pra minha cama às 22 de um dia útil só pra aliviar a tensão e não lembrar dele durante o resto da semana, como qualquer homem hetero médio. Que sei sorrir pra quem me abraça com uma faca nas costas porque vou empurrar a pessoa sobre a própria faca na primeira oportunidade. Que comer casada é divertido se o marido tiver tentado pular a cerca comigo primeiro. Que eu consigo trabalhar com pessoas que me enojam se isso me permite morar a 5 km da praia. Que quando o mundo pega fogo, eu cuspo gasolina. E que se filho da puta voasse, talvez eu também estivesse no céu.
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