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Sabe II

  • Foto do escritor: Yilan Ruh
    Yilan Ruh
  • 12 de jun.
  • 4 min de leitura

Sabe, hoje eu tava ouvindo Uma Noite a Mais, do Letodie. Sempre lembro da gente naquele trecho: "e eu sinto, eu sinto bem mais do que você vê, mesmo sendo frio, eu dei meu coração a você". Cê me disse uma vez, durante uma briga, enquanto trocamos acusações, que eu era fria. No meu orgulho, me ofendi. Hoje, entendo que cê tava certo. Levo a máxima do "nada pode me ferir porque não há nada que você possa fazer comigo que alguém não tenha feito antes" então, se algo me magoa, eu viro um bloco de gelo. É que cê sabe que, quando se trata de mim, trato tudo como frescura. Se eu não posso impedir o mundo de me ferir, posso me impedir de esboçar reação. Trato meus incômodos como farpas: são chatas, mas podem ser ignoradas e não me impedem de fazer absolutamente nada.

Sabe, eu também tento consertar meus erros de relações anteriores com você. É que, dessa vez, eu quero que dê certo. Minha vida é controlada demais, eu sou controlada demais, e a válvula de escape do tédio que a estabilidade e a ordem me trazem sempre foram as minhas relações. Tô ciente de que tem mais presença em nós o que nos falta, e que o que me falta é desordem. Não é à toa que eu namorei um psicopata com tendências sádicas e, depois, um viciado em cocaína. Minhas relações casuais eram, majoritariamente, com gente instável, com vícios ou com bloqueios emocionais. É a primeira vez que eu posso relaxar e, honestamente, nem sei o que fazer com isso.

Sabe, eu percebi que era diferente quando a minha mãe me apontou que meu namoro tinha som. Me lembro exatamente de seu comentário "minha filha que tanto você e esse menino riem nesse quarto?" . E realmente eu tava sempre dando risada e ela nunca me viu rir tanto. Nem eu sabia que eu tinha em mim esse lado "quinta série". Quando estamos juntos, uma queda de sabonete no banho nunca é só uma queda de sabonete nem uma paçoquita oferecida é só uma pacoquita oferecida. E, por falar nisso: paçoca aí é quanto?

Sabe, fui num psiquiatra. Tomei coragem pra limpar embaixo do meu tapete. Contei pro João, meu terapeuta, que controlei minha vontade de falar: "doutor, me dá uma droga aí que me conserte, porque eu me dei seis meses de muletas pra resolver minhas merdas e não posso perder tempo com palhaçada". Nunca atendi um único psicólogo que não tivesse uma condição psiquiátrica, mas considero um ultraje precisar de medicação pra lidar com comorbidades do meu transtorno de personalidade. Saí de lá com duas receitas, um esporro vestido de terror psicológico, a promessa de que as dosagens das medicações seriam triplicadas nos próximos meses (orientação que eu sei que não vou seguir) e a sensação de aleijamento por depender de um recurso ergogênico pra ficar bem. Mas, sabe: é a primeira vez que consigo me imaginar chegando aos 30 e, se quero estar contigo, não quero estar doente.

Sabe, eu tô mesmo me esforçando pra ficar e pra ficar bem. Cê sabe que eu não sei pedir e que eu resisto muito em contar com qualquer coisa além de mim. Minha vontade ainda é sumir toda vez que a bad bate, e eu sempre tenho medo de amolecer se aceitar colo. Eu não gosto de falar; o que é meu, eu guardo pra mim. Mas tenho me esforçado, mesmo com essa sensação horrorosa de que tô expondo meu pior lado. E, estranhamente, cê tem ficado também, e de alguma forma me conhecer de verdade tem te feito me amar cada vez mais. E eu considero isso o ápice da insanidade, porque, puta que o pariu, eu sou muito maluca, cara.

Sabe, eu tava pensando que eu quero mesmo conquistar o mundo. Mas que voar sem você é o mesmo que um tombo. Eu quero fazer loucuras com você. Eu quero fazer travessias nas montanhas, um mochilão pela America Latina, passar horas na estrada com a bunda na moto, fazer rafting, pular de bungee jump, saltar de parapente e mergulhar com tubarões. Porra, é que cê sabe, eu passei tempo demais perdendo a minha juventude por medo das violências se repetirem. Cê me dá vontade de testar minhas coragens. Meus medos eu já conheço bem.

Sabe, fiquei preocupada pela mudança para longe porque cê vem do trampo lá na Barra. Tô comprando meu canto na região dos lagos e, engraçado: a primeira coisa em que eu pensei foi em nós dois tomando café com aquela vista da janela da sala, que é a mesma das estradas nas nossas mini viagens de fins de semana. E que cê gosta de cozinhar e de tempero fresco, então preciso arrumar um canto pra uma mini horta em alguma janela. E no quanto eu tô empolgada pela possibilidade de reformar o meu apartamento com você, e como vai ser divertido pintar paredes e portas e brincar com iluminação quente e automatização inteligente.

E, sabe, mesmo que eu finalmente esteja lidando com a bagunça que vem quando se encara um processo de reorganização… eu tô empolgada. Pela primeira vez, empolgada com um futuro que tem a ver com paz. Eu funciono na guerra, mas acho que, por você, posso me acostumar a funcionar na paz também. Acho que posso aprender a ser mais flexível. A relaxar com uma massagem e um filme quando estiver exausta ao invés de correr até minhas unhas ficarem pretas. A deixar você carregar algumas compras e não me sentir ofendida com isso. A ver comida como nutrição pro espírito e não só como macros. A dormir com a louça do jantar suja quando estiver muito cansada. A remarcar algumas sessões e faltar alguns treinos quando estiver doente. A fazer algumas atividades que surgiram de última hora se elas me apetecerem. A entregar o feito ao invés do perfeito. A entender que nem sempre o que eu vou receber vai ser justo ao meu esforço, então que não preciso ser excelente em tudo o que faço. É que, sei lá. O mundo me fez aço, mas cê me faz flor.

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