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Planos, Acasos e Ambulâncias

  • Foto do escritor: Yilan Ruh
    Yilan Ruh
  • 22 de abr.
  • 2 min de leitura



Tenho treinado meus olhos para que sejam como meus ouvidos. Minha profissão me ensinou a escutar, não apenas ouvir — a acolher silêncios, pausas, ruídos de alma. Mas percebi que ainda via muito sem, de fato, enxergar. Foram anos de olhos baixos, fugindo do contato visual, tentando me tornar invisível. Acabei cultivando um olhar distraído, quase ausente. Agora, faço o exercício de observar ativamente os cenários onde me encontro, sempre recitando meu pequeno mantra de atenção plena: não te esqueça, sobretudo, de olhar devagar.

Caminhando pela praia, com atenção aos mínimos detalhes — um grão de areia, o ritmo das ondas, a dança das nuvens — encontrei um caranguejo. Em meio a um chão feito de conchas brancas, tantas que pareciam cobrir a areia por completo, ele saltou aos meus olhos. Estava morto, mas ainda segurava entre as garras uma concha, pequena como ele. Pensei no quanto aquela concha devia ser importante pra ele. Afinal, mesmo na morte, ele não a soltou. E no quanto, naquele instante, aquela concha — tão comum quanto as outras centenas à minha volta — também se tornou importante para mim. Me senti privilegiada por encontrar seu corpo, e por ele me lembrar de nunca soltar aquilo que é essencial pra mim, ainda que a morte me espreite no caminho. Minha concha está nas costelas, eternizada em música.

Andei. E andei. E andei mais um pouco. Pensei em desistir algumas vezes. Tinha medo da altura, dos pés feridos, da dificuldade de escalar rochas quando mal consigo apoiar os calcanhares no chão. Tive medo da tempestade prevista para o início da tarde, medo de estar em um lugar sem sinal, acessível apenas pela costa. Medo dos buracos de caranguejo. Medo de um peixe com dentes que nadava por perto. Tenho medo, sempre, de situações que possam me forçar a precisar de ajuda. E então, de repente, tudo cessou.

"Vi, você só tá ansiosa", ele disse. E era isso mesmo. Ainda me custa aceitar que as coisas têm seu próprio tempo — que não posso vivê-las tentando prever ou apressar o que já está a caminho. Mas tudo fica mais leve quando alguém acredita no seu passo, mesmo quando você duvida do próprio fôlego.

No dia seguinte, acabei me acidentando da forma mais boba possível. Nossa aventura virou dois passeios de ambulância, recheados de piadas: sobre como ele realizou meu sonho de andar de ambulância depois da viatura, e sobre como o acidente era só uma “frescura”, e que já estávamos prontos pra escalar mais rochedos. E eu aprendi que posso passar a vida planejando, medindo cada risco — e ainda assim, seja lá o que governa o caos do mundo, pode rir alto e dizer: hoje, não. Mas, a depender do espírito com que enfrentamos o imprevisível, podemos — sim — colocar estrelas nos olhos.

Espero que cada um encontre o seu "alguém". Alguém que peça ao enfermeiro pra costurar seu pé direitinho, só pra não atrapalhar seus planos de vender pack de pé. Alguém que, mesmo frustrado por não conseguir te levar numa ponte romântica à noite, transforme uma cozinha, uma caixa de esfirras e uma Coca-Cola zero com seu nome no cenário mais doce do mundo.


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