Náusea
- Yilan Ruh
- 5 de fev.
- 3 min de leitura

Hoje eu vi o sol se esconder de novo. Me sinto uma puta. Tô entregando meus valores morais por grana e isso não difere muito de abrir as pernas. Saí de mais uma reunião com aquele gosto amargo na boca, o estômago embrulhando, o maxilar trincado, a cabeça doendo. Nunca quis tanto ser uma porra duma patricinha que pode jogar tudo o que a desagrada pro alto a qualquer momento. Odeio não ter nascido com um único privilégio. Vim do nada, não vou herdar nada, não tenho nada senão o que tô conquistando hoje. Tô cercada de gente que nasceu com todas as facilidades possíveis à seus pés e não fazem metade do que faço. Pra alcançar qualquer coisa eu preciso abrir o meu caminho na base da porrada. E eu odeio ficar choramingando feito uma garotinha, mas mano, é muito injusto.
Consegui, eu tô vencendo na vida. Tô ganhando melhor que uns 95% da população brasileira, me formei em uma universidade federal, sou pós-graduada. Moro sozinha a 5 km da praia, mobiliei minha casa do 0, tenho uma lava e seca inteligente, uma cafeteira de mais de mil reais, pago as contas da minha mãe, já que ela não consegue pagar nem o próprio aluguel. Tô caçando ar condicionado pra comprar, eu, que cresci com a luz sendo cortada quase todo mês porque ou o dinheiro ia pra comida ou ia pras contas. Não faz 2 anos que eu sentei na varanda de casa e chorei porque não tinha talher pra comer a refeição que fiz na panela elétrica que me emprestaram. Eu deveria estar feliz, mas não tô, porque em busca da minha liberdade e da minha autonomia eu virei um peão na mão de lideranças políticas. A psicóloga humanizada, racializada e LGBT de cabelo azul, a cara da diversidade, uma merda de chamariz pra angariar verbas e trazer filiações pra partidos políticos que não dão uma foda pra população. Eu quero tomar um banho de álcool e acender um fósforo pra me esterilizar toda vez que botam a mão no meu cabelo e me chamam de Vivi. Odeio politicagem.
Eu tô puta, mano. Eu só vivo puta e de um jeito diferente do começo do texto. Deve ser por isso que pareço tão calma: eu tô ninando os meus dragões o tempo todo. Se eles acordarem eu boto fogo no mundo inteiro. Fico puta de ser usada como isca pra atrair gente pobre e ignorante, que veio do mesmo lugar que eu vim e, portanto, se identifica comigo. Fico puta de investir o meu conhecimento em espaços que não enxergam as pessoas assistidas mais do que números pra receber verba. Fico puta de pensar que fui voluntária por 2 anos, enquanto fazia minha renda particular com atendimentos a 30 contos, em um espaço onde a família inteira do fundador trabalhava e recebia pra isso. E, sobretudo, fico puta por perceber que eu sempre percebo as coisas, mas eu não quero acreditar que as coisas são tão sujas quanto o que eu tô vendo. Eu quero acreditar que as pessoas são melhores do que elas se mostram. Eu tenho que pintar, eu tenho que colorir.
Eu quero meus planos pra ontem e tudo o que quero pra vida exige paciência, constância e esforço diário. Meu mal é querer aos 20 e poucos o que as pessoas de 40 têm. Tô sempre atrasada. Tento não me atropelar, mas meu peito tem vontade própria. Eu sei que eu fiz a escolha certa. Eu sei quando vou dormir e abraço a boneca que ganhei de uma paciente, ou quando cozinho o meu feijão na panela que ganhei de outra (minha primeira panela!). Sei quando vou até a minha varanda e rego a única planta que não matei até hoje, quase um milagre, que foi presente de aniversário de um outro paciente que sabia que eu matava todas. Quando vejo uma pessoa que comecei a atender a beira do suicídio com o início do curso dos seus sonhos marcado. Eu sei que tô no caminho certo, sei que tô fazendo a diferença, mas nada basta pra afastar essa sensação de que tô carregando água em uma peneira. Não importa o que eu faça, eu tô dentro de uma estrutura que é uma máquina de moer gente e eu não posso quebrar a máquina.
Eu sei que eu fiz a escolha certa, mas será que só por uma semaninha a vida não podia parar de colocar gente filha da puta no meu caminho? Deus, devolve meus pincéis!
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