(in)dependências
- Yilan Ruh
- 21 de fev.
- 4 min de leitura

Fico assustada quando percebo a visão de "super mulher" que fazem de mim. As pessoas mais fortes que conheço são as mais "tantans" e eu não sou exceção. Semana passada um amigo me disse que eu não faço ideia do quanto ele gosta de mim, do quanto me admira. Ontem, um outro veio com o mesmo discurso, mas acrescentando que com a minha aparência eu poderia ter chegado aonde cheguei de uma forma muito mais fácil e não quis. E, apesar de eu ser uma grande crítica dessa perspectiva determinística, de que somos frutos das nossas histórias, eu respondi que eu sou assim porque eu precisei ser. Para tudo, uso dos dois pesos e duas medidas. Minha mão sempre é mais pesada quando se trata da minha história.
Não menti: realmente acredito nisso. Eu tinha duas opções: ou eu mudava a minha realidade ou acabava com tudo. Tentei a segunda opção duas vezes, ambas na adolescência. Na primeira, me julguei como incompetente por ter falhado na tentativa, mas desenvolvi o péssimo hábito da automutilação. Na segunda, recorri à medicamentos. Tinha certeza que tinha conseguido, mas conforme as horas viraram dias, a esperança de que tinha dado cabo do meu fígado virou mais uma decepção. Não recebi socorro em nenhuma das duas. Fingi que estava doente e faltei uma semana de aula. Depois disso, eu desisti. Ainda queria morrer pela perspectiva de fuga da minha realidade, mas eu preferia ficar viva que falhar e ter alguma consequência permanente que me tornasse dependente de cuidado.
Tem um trecho de uma música do Leto que diz "depois de tanta merda eu não sinto mais nada" e esse é um trecho que me movimenta bastante. Eu falei com o João essa semana, meu novo terapeuta, o quanto me assusta perceber que pouca coisa me afeta e quão pouca reação eu tenho sobre o que me afeta. Passo tudo pelo crivo da racionalidade e busco a ação mais lógica pra lidar com o que (eu acredito) teria o potencial de me jogar no fundo do poço alguns anos atrás. Eu vejo pessoas caírem de alturas que eu considero como pequenas e quebrarem enquanto eu me sinto capaz de continuar correndo com um tornozelo quebrado. Eu passei pelas piores situações sozinha. Já fui submetida à tortura e desmaiei antes que me arrancassem uma reação de dor porque eu me recusava a deixar alguém feliz com o meu sofrimento. No dia seguinte estava indo à faculdade normalmente, usando roupas compridas pra esconder as marcas pretas que ainda ficariam 3 semanas na minha pele. Minha família só soube do que aconteceu quando o oficial de justiça bateu na minha porta, me intimando a depor. Aí eu ouvi o quanto eu era burra, porque agora ele viria atrás de mim pra terminar o serviço. Se não fosse a vontade de devolver o mal-estar pelo comentário maldoso elas nem saberiam o que denunciei. Escrevi meu TCC, um trabalho de péssima qualidade, que eu gostaria de eliminar do planeta, em meio à idas e vindas na delegacia. Precisava me formar.
Não importa o quanto as coisas estejam péssimas, eu continuo fazendo o que tenho que fazer porque tenho em mente que nada nunca esteve bem. Eu gosto da paz, mas acho que não sei viver fora da guerra. Eu consigo entender a necessidade de anestesia, o ímpeto de fugir do sofrimento e a incessante busca pelo prazer que eu escuto todo santo dia, mas é um entendimento que vem só da teoria. Hedonismo me é algo distante, um tanto irreal. Acredito que quem não teve escolha a não ser passar pelo sofrimento aceita que a dor é essencialmente fundamental à manutenção da vida. O desconforto é justamente o que nos impele a estranhar, a fazer um movimento de desnaturalização em relação ao objeto que causa o nosso desconforto, a perceber aquilo que nos ameaça. E, por outro lado, transcender a dor ao invés de evitá-la, nos torna fortes, resilientes, flexíveis. Ao invés de passar o dia sentado no chão porque levou um tombo, você aprende a se responsabilizar pela queda, a levantar, a passar um remédio que vai fazer a ferida arder ainda mais, mas que vai evitar uma infecção e que aquele não vai ser o último tombo da sua vida se ele não te matou.
A vida não é um morango e, longe de romantizar o sofrimento, é preciso dizer que nada que realmente tenha valor vem fácil (e se vier, irá embora com a mesma facilidade). Um empregado público não tem a mesma estabilidade de um servidor público porque enquanto o primeiro veio de uma indicação, que fica condicionada ao governante vigente, o segundo veio dos anos de empenho nos estudos. Um corpo forte, construído sobre drogas, começará a perder suas características tão logo essas drogas sejam suspensas, ainda que se mantenham os outros fatores. A excitação com a compra desnecessária que você fez pela internet vai passar assim que abrir o pacote, bem como o prazer pela comida ultra processada que você pediu no Ifood como "conforto" pelo dia ruim e os problemas ainda continuarão lá, esperando uma ação ou uma nova fuga.
Mas o problema é que a nossa capacidade de adaptabilidade nos ajusta à tudo, mesmo a dor. Ontem eu vi uma matéria em que o cara que pedia (insistentemente) pra sair comigo há 2 anos atrás tá em prisão preventiva. Matou a namorada com uma espada e ateou o corpo dela em uma lareira. E eu só pensei "que merda, né?" porque, bom, eu sou um imã de toda sorte de malucos e tenho um processo criminal rolando na justiça cujos detalhes fizeram a defensora do réu se calar após o meu depoimento. Convivo com coisas que só a Step soube, depois de uns 3 anos na terapia. Às vezes não consigo perceber quando tô chorando e ignoro uma dor até que ela me desmaie. Sentir dor é tão natural quanto respirar. Preciso de uma quantidade exorbitante dela pra perceber que estou sofrendo e fazer algo a respeito, então só deixo acumular. Um dia, com a calmaria de um monge, eu paro de correr, arranco o band-aid e vou limpar a ferida, já muito infeccionada, antes que eu perca a perna.
Comentários