Estalos
- Yilan Ruh
- 7 de abr.
- 5 min de leitura

Ando me sentindo estranha. Eu penso demais e abril costuma ser um mês terrível onde, dia a dia, decaio um pouco, até que no fim do mês estou no fundo do poço. O mês vira e eu renasço das cinzas, magicamente, como se não tivesse passado 1 mês comendo o pão que o diabo cuspiu, sentou e dançou tango sobre. Detesto essas oscilações, mas nunca me propus a fazer uma análise profunda do que acontece, exceto que meu inconsciente joga toda a sorte de lembrança traumática ignorada no meu colo e berra "lida aí, foda-se". Decidi que isso acaba esse ano, então precisava entender o que ocorre. Refiz minha trajetória e concluí que em 27 anos, desde que me lembro, não tive um único aniversário realmente feliz. E como eu não consigo sofrer sem me colocar em estado de sofrimento intenso, assim que estragam o meu dia eu dou um jeito de piorar o resto.
Mas esse ano as coisas estão diferentes. Não tem nada de errado e é isso que me causa estranhamento. Entendi que as coisas são como elas são, que as pessoas são o que são, que eu sou o que sou e que está tudo bem desde que eu possa escolher, conscientemente, com o que e como eu quero lidar. Percebo, com divertimento, o quanto a minha vida deu voltas até que eu parasse exatamente nas mesmas conclusões em que teria chegado se não fossem os entraves e desvios no caminho. Até o que escolhi na minha profissão é o que eu queria antes de entrar na faculdade e que foi desincentivado até que eu acreditasse não ter competência (e por competência entenda estabilidade mental, afinal, psicólogo precisa ser um robô, um ser absolutamente objetivo e inerte de quaisquer sentimentos frente ao sofrimento alheio). Está tudo bem e eu ainda desconfio do que está bem, mas acho que posso me acostumar a aproveitar a sombra e a água fresca.
Fui fazer trilha sozinha (de novo). Às vezes preciso silenciar o mundo pra conseguir ouvir a minha voz. Faz alguns meses que sinto que tenho errado, que repito que "preciso dar um jeito na minha vida". Não consegui entender essa sensação tão incômoda até hoje. Subi o caminho sem fones, sem música e pensando "não te esqueças, sobretudo, de olhar devagar". Assim, evitei pisar em alguns insetos, vi algumas borboletas camufladas e até uma coruja branca escondida entre as árvores. Sempre me sinto uma sortuda por avistar esses animais que são vítimas da superstição mas, por outro lado, se existe um ordenamento no caos que é o universo, talvez eles sintam o quanto eu sou fascinada pelos renegados e incompreendidos e ambos sejamos igualmente sortudos nos encontros. Acolhi a última Bruxa que entrou na minha casa, oferecendo um cantinho com água e um pouco açúcar quando diversas pessoas me orientaram a matá-la pra "cortar" a mensagem ruim que ela veio trazer. Pela manhã ela foi embora e, talvez por gratidão, nenhuma desgraça me acometeu.
No começo, foi difícil andar devagar. Treinava meu olhar, repreendia meus pés. Fui apreendendo a respiração, os passos, as batidas. Me forçando a desacelerar até que me senti conectada ao presente. Ouvi os estalos das folhas sob os pés, o som da minha respiração, o mar quebrando na praia, lá longe. Não encontrei uma única pessoa na floresta, mas senti a mesma presença que sentia sempre que me sentia sozinha. Percebi, então, onde tenho errado: eu estou sempre correndo.
Estou sempre competindo contra mim mesma e sempre perdendo. A única coisa que já quis e não logrei êxito foi quando busquei a morte. Vivo um paradoxo: a cada vez que ganho, eu perco. Nada nunca basta. Se fiz meu máximo, deveria ter feito um pouco mais, se fiz a mais, a meta seguinte deve ser maior ainda, já que a anterior foi passível de ser alcançada. O prêmio por alcançar uma montanha é uma montanha ainda maior pra escalar. Sempre falta algo, nada nunca é suficiente.
Me esqueci de como é angustiar-me na paciência. Troquei o vazio, esse espaço incrível de criação, por ansiedade. Sei que alcanço tudo o que me proponho a fazer, mas me esqueci que as coisas mais sólidas demandam tempo em sua construção. A força, a fé, a sabedoria, a gentileza, o amor, todas são virtudes testadas no tempo. O caminho da vida é caminho onde se vê a meta, mas jamais a meta alcançada, a não ser no fim dela. E daí a necessidade de angustiar-se na paciência. Contudo, é muito mais confortável ceder ao impulso de preencher esse vazio com toda sorte de "pequenas fugas" do mundo.
Desmontei meu altar, mas não tive a coragem de jogar um único item fora. Coloquei minhas estátuas no alto da minha cozinha, meus baralhos escondidos em um baú, meus cristais ao lado da cama. Disse que eram itens bonitos de decoração. Parei de rezar, mas toda vez que enfrento uma crise me percebo cantando "Come trovare in te quella pace e calma che può riempire l' anima". Me recuso a acreditar, mas faço chás quando estou triste, acendo incensos quando estou estressada e quando a desilusão com o mundo me esmaga, penso "sê piedosa comigo, meus próprios lobos me devorarão logo", a mesma prece silente que me acompanha há anos e anos. E quando toquei um arco de novo, como há 10 anos atrás, tive a mesma sensação estranha de que ele era uma extensão do meu próprio corpo.
Acho que entendi que dar conta da minha própria vida já me ocupa bastante. Que posso ajudar pessoas por meio do meu trabalho, mas que não posso salvar ninguém e que, indo além disso, só nós podemos salvar a nós mesmos. Que meus afetos não são meus pacientes e que já que eu não consigo controlar o que me atrai, eu devo escolher não me envolver romanticamente com gente que eu sei que me atraiu porque é perturbadinha da cabeça. Que eu sou coração mole, então meus cortes devem ser definitivos porque eu não sei revidar e não consigo deixar de sentir empatia, por mais (insira aqui seu pior xingamento) que a pessoa seja. Que eu não preciso me preocupar tanto em sustentar uma imagem de braveza pra afastar possíveis predadores agora que eu sei que o meu ódio vai me proteger caso eu precise dele. Que eu ainda tô construindo minha própria vida, então que não deveria me sentir culpada por não proporcionar algo que nem mesmo tenho. Que cada um é responsável pelas suas escolhas, que toda escolha traz suas próprias consequências e que tentar escolher por alguém é privar essa pessoa de sua autonomia, além de uma completa perda de tempo, porque ela fará o que bem entender no fim das contas. E que a vida é linda (apesar dos pesares), as pessoas são complicadas (umas mais, outras menos), e a Terra, em sussurros e suspiros, lembra do que realmente importa.
Chorei lendo cada palavra desse pequeno texto. É incrível como nossas histórias se conectam em linhas tão singelas. Parabéns!