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Apesar dos pesares

  • Foto do escritor: Yilan Ruh
    Yilan Ruh
  • 16 de abr.
  • 4 min de leitura



Eu sou uma pessoa controladora. Gosto de ter horário para dormir, gosto de saber quantas calorias ingiro, gosto que as coisas tenham seus conceitos e alcunhas bem estabelecidos, gosto de saber exatamente o que farei no dia seguinte. Indeterminações, inconstâncias e irregularidades me bagunçam. Quando minha antiga terapeuta me apontou isso pela primeira vez, fiquei muito ofendida. Hoje, assumo isso com facilidade. E o controle, muitas vezes, tem caráter manipulatório, justamente pela necessidade de controlar os meios para que sejam previstos os fins. Isso me perturbou muito mais do que me assumir controladora e me perturbou ainda mais perceber que posso tentar, à vontade, controlar pessoas, que falharei.

Sempre achei que se oferecesse o meu melhor, eu receberia o melhor, como se pessoas fossem equações matemáticas e a soma de X + Y sempre gerassem o mesmo resultado. Acreditava que se me pusesse disponível e demonstrasse ser gentil, ainda que o outro não fosse, isso despertaria um comportamento espelhado e eu estaria protegida do mal. Até que, um dia, tive o estalo de que a conduta do outro não pode ser manipulada pela minha conduta. Não existe relação causal entre o que eu faço e o que o outro faz a partir disso, apenas exercícios de tomada de decisão a partir de nossa própria autonomia. Assim, devo me responsabilizar por minhas escolhas, pelo meu querer. Em outras palavras: fiz porque quis, porque é o que faz sentido pra mim, porque é quem eu sou. O outro não tem absolutamente nada a ver com a minha conduta e nem me deve nada. Cada um oferece o que tem dentro de si.

Segunda uma paciente me pediu colo. Fiquei sentada na sessão, com uma mulher com idade pra ser minha mãe deitada no meu colo, fazendo carinho em seu cabelo enquanto ela chorava. Nada na faculdade nos prepara pro campo, mas a minha vivência tem me preparado pra assumir esse lugar, nas relações facilitadoras, de tentar oferecer o que a pessoa precisa, dentro dos meus limites e do que faz sentido pra mim, é claro. As pessoas que costumam "não dar certo" com outros terapeutas se dão comigo, como se eu fosse uma cola que une os desgarrados do mundo, então a maioria das pessoas que atendo, entre pausas e retornos, estão comigo desde que formei.

Fiquei na merda. Fiquei pensando se escolhi a profissão certa, se não deveria estar trancada em um laboratório estudando propriedades químicas e físicas de pedras, como eu tinha planejado há anos. Fiquei pensando nas vezes em que fui buscar informações que são do âmbito da assistência social da região do paciente. Fiquei pensando nas vezes em que caí no choro e depois fui trabalhar isso na minha terapia por conta de uma sessão. Fiquei pensando se eu deveria mesmo lidar com gente. Fiquei pensando, e pensando, e pensando. Me doeu saber o quanto a minha ajuda é importante e que, em breve, eu vou ter que ir embora e deixar todos eles (e eles nem fazem ideia). Porque eu me prometi que ia deixar de ser sândalo perfumando machados e eu vou me trair de novo se eu permanecer em um espaço em que tenha sido coagida e desrespeitada.

Faz uns dias que ando dormindo mal. Tenho pesadelos com o passado. Dia desses acordei com o som do minha voz, que parecia o ganido de um cão de rua, implorando. Não consegui voltar a dormir, fiquei com medo. Aceitar todas essas coisas que aprendi tem me doído mais do que percebê-las. Aceitar que coisas que sempre me incomodaram não podem mais ser ignoradas, aceitar que eu sou uma pessoa tão calma porque estou transbordando de ódio por dentro e, sobretudo, aceitar o quanto odeio a mim mesma, o que faz eu ser o que sou, o que me faz ser tão boa no meu trabalho. Eu me odeio porque eu odeio a violência, mas amo os violentos. Por pior que seja a conduta de uma pessoa, eu consigo compreendê-la e eu acredito verdadeiramente no potencial de mudança dela. Eu odeio não conseguir odiar o outro, eu odeio continuar acreditando, apesar dos pesares. Porque é isso que me faz mais vítima de mim que das pessoas.

São quase 28 e eu sinto que os espaços que ocupei já não fazem sentido algum. Me sinto deslocada em ambientes que eu frequentava. Não quero mais relações casuais porque o interesse que me despertam cessa no primeiro vacilo. Não consigo passar muito tempo com meus amigos porque amadureci uns 10 anos em 2 e eles permanecem exatamente as mesmas pessoas de anos atrás. Não consigo ter uma conversa um pouco mais longa com nenhum ser humano fora do meu trabalho sem que essa pessoa tente flertar comigo em algum momento. Fumei 3 cigarros seguidos no domingo porque eu precisava chorar e só consigo se tiver a sensação de que estou me machucando. Pensei se não jogava a carteira fora em seguida, mas percebi que o cheiro de cigarro me enoja o bastante para não virar uma compulsão, então vou deixar que mofe na gaveta junto com as minhas tentativas de controlar as coisas sobre as quais não tenho controle.

A vontade de ir embora aumenta a cada dia. Minha liberdade vale mais que qualquer coisa e sinto que ando trocando a minha autonomia por reconhecimento. Não quero, mano. Já passei anos demais performando a boazinha. Qualquer dia desses, silenciosamente, vou sumir. Ando pensando em comprar meu canto em um lugar onde não conheça ninguém. Criar boas memórias, construir novos vínculos, estar em espaços em que eu me sinta conectada, testar minhas coragens... Meus medos eu já conheço bem.

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