Ainda bem que deu errado
- Yilan Ruh
- 28 de ago. de 2024
- 3 min de leitura

Dia desses falei na minha terapia que sentia que eu já não me importava o bastante com nada. E que essa sensação vinha do contraste de como eu era antes, me importando com tudo. A ânsia de entender o outro permanece, mas mais pela sagacidade de apreender o mistério que pela necessidade de justificar a falta alheia. Acho que finalmente entendi, 27 anos depois, que eu posso achar coisas quebradas e retorcidas muito bonitas, mas mesmo assim me cortar e morrer de tétano se escolher brincar com elas.
Quer ir? Que vá! Que me atravesse o que não permanece. Hoje eu escolho deixar as portas sempre abertas, mas moradores e visitantes desfrutam do espaço de modo distinto. Eu sei quem me faz café, poemas e me dá flores. E sei quem só quer me fazer depósito de suas vontades. Me reservo o direito de tratar como objeto quem só me vê como um troféu sexual. Mas confesso que, hoje, é muito mais provável que eu permaneça na minha solitude se o que o outro me oferta se restringe à algo que posso alcançar, sem burocracia alguma, abrindo a gaveta do meu criado mudo. Quando você aprende a se fazer de lar, a seletividade é critério de condição de abertura aos encontros.
Eu gosto muito de ficar sozinha. De estar sozinha, de sair sozinha. Para eu escolher estar com o outro, esse precisa me proporcionar um momento semelhante ou melhor ao que eu mesma me proporciono quando estou só. Eu ponho essência de ylang ylang, luzes azuis e álbuns de indie só para tornar o meu momento de leitura mais prazeroso. Tomo um banho demorado, esfolio minha pele, a perfumo e escolho uma lingerie bonita só para dormir. Moo os grãos na hora, escaldo filtro e xícara e ponho a mesa só para tomar uma única dose de café expresso. As cicatrizes estão aqui para lembrar de um tempo em que eu não sabia como me tratar bem e que, por isso, permitia que outros me tratassem ainda pior.
Hoje, que venha devagarinho ou não venha. Que seja leve. Descomplicado. Que torne tudo mais fácil. Não quero interpretar silêncios nem complexificar as ausências. Porque amar pode ser esforço, mas não precisa ser sacrifício. Quando falo em "esforço", falo no sentido de que é difícil se fazer vulnerável. É difícil se permitir ser conhecido sem se retocar, sem passar verniz. É preciso esforço para deixar de fazer esforço e só se deixar ser. Esforço para raspar o rancor e se permitir o encontro sem projetar as sombras do passado em quem está chegando.
Hoje eu escolho estar com quem entende que mais gostoso que o meu corpo, é uma conversa pós foda comigo. Que compartilha as desventuras e os desencontros às risadas. Que sabe que o melhor espaço é aquele que construímos quando podemos estar juntos. Que não me coloca como a serpente que tentou Adão porque não consegue lidar com a sua castração cristã. Que sabe que cada item meu é preto, mas que minha cor favorita é turquesa. Que eu transformo palavrões em música e os canto quando estou muito estressada. Que eu amo fruta mais que tudo e que não recuso um docinho (ainda mais se for de fruta). Que eu ando na ponta dos pés. Que eu sou chata e cheia de manias que vão desde não conseguir comer com outra pessoa usando jogos de talheres diferentes até não conseguir dormir com louça suja.
Ainda bem que deu errado. Que merda que é estar em espaços em que a gente nem pode ser a gente. Eu lembro que fiquei pasma uma vez, quando li um post de mulheres que falam que acordam mais cedo que os esposos para se arrumarem. Mas aí minha autocrítica me chamou de hipócrita de novo. Já fiz, não fiz? Dormi sem meia no meu pé de cadáver, acordei igual a um leão sem a minha touca de cetim, usei uns sutiãs rendados incomodando meus piercings e ameaçando arrebentar meus mamilos.
Que merda de mania de se apaixonar por alguém e querer mudar aquilo que, a princípio, te atraiu. Te amam de cabelo azul e depois dizem que ficaria melhor preto. Se atraem pela curiosidade no seu beijo metálico e depois dizem que você ficaria mais bonita sem os seus adornos. Que ânsia é essa de destruir aquilo que despertou o desejo de possuir depois de tê-lo, finalmente, possuído! Mil vezes: ainda bem que deu errado! Que desgraça seria se desse certo. Que custoso estar em um espaço de poda, de estreitamento, de limitação de possibilidades de existir, de experimentar, de ser e de vir a ser.
Ainda bem que deu errado.
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