top of page

Abril me quebra

  • Foto do escritor: Yilan Ruh
    Yilan Ruh
  • 6 de mai.
  • 3 min de leitura



Minha família ficou com medo quando sofri um acidente de modo. Disseram que "sou estranha com dor". Lhes disse que também fui atendida e não houve a necessidade de nenhum exame especializado porque não era nada grave. Por "estranha" queriam dizer que talvez eu não conseguisse perceber o quanto estou ferida. Que poderia ter me quebrado e não ter percebido. Meu histórico envolve episódios de desmaiar de dor antes de emitir qualquer tipo de reação. Acho que nunca entenderam que eu sinto dor, eu só não demonstro, porque sentir dor é algo tão natural quanto respirar. Eu escolho demonstrar dor em momentos específicos, que possam me prejudicar ou prejudicar alguém por uma reação involuntária. Esse é o meu nível de autocontrole.

Eu escolhi um esporte que me mantém frequentemente com dores musculares e estou escolhendo outro que - eu sei! - me trará ferimentos nas mãos e ainda mais dores. Escolher conscientemente as minhas dores foi a saída escolhida para não buscar dores de modo inconsciente, em contextos que ofereçam perigo ao meu organismo. Me planejando, me antecipando, eu me protejo. Os treinadores me amam porque eu nunca reclamo, só vou lá e faço o que precisa ser feito, mesmo que eu não faça ideia de como fazer. Eu nunca recuso um desafio que tem o potencial de me tornar alguém melhor.

Eu sou um típico neurótico obsessivo. Entendi isso ainda na faculdade, nas perturbadoras aulas de Psicanálise. Cresci em um ambiente marcado pela instabilidade e sou incapaz de relaxar se não sentir que a minha vida está em ordem e as circunstâncias, sob meu controle. Racionalmente, óbvio que sei que não estão, mas o estresse e a culpa que a falta de uma rotina bem estabelecida me traz me faz preferir alimentar a minha ilusão. Para tanto, eu tenho os meus rituais, que também tento manter sob controle para não me engessar. E tento ignorar a sensação de que os anjos vão tocar as trombetas quando não consigo realizá-los.

Mas a minha vida virou uma bagunça em abril. Todo ano, nesse período, as coisas viram de pernas pro ar e, ainda assim, eu nunca consigo me preparar o bastante pra tanta instabilidade. Saí em uma entrevista de jornal, estou cursando três especializações correlatas, ajudando a escrever um livro que ficará disponível para consulta da população em uma universidade pública, recebi o convite para participar de mais um projeto, estou comprando um imóvel na região que sonhava visitar quando era uma criança que vivia sob ameaça de despejo. E, ainda assim, as dores permanecem doloridas.

Às vezes me questiono se o que me aflige é a dor ou a memória da dor. Me sinto fria e dura feito aço. Capaz de fazer, na maior parte do tempo, praticamente qualquer coisa, independente das circunstâncias. Entretanto, ainda vomito toda vez que tento comer o doce árabe que já foi meu predileto. Ainda me escondo quando percebo que estou chorando, perseguida pelo fantasma do você fica tão nojenta chorando. Ainda acordo gritando, grunhindo, implorando. Ainda tenho dores pélvicas, vaginismo e sangramentos. Ainda tenho enxaquecas dos episódios de bruxismo. Meu corpo continua reagindo ao que a minha mente insiste em negar.

Em fins de abril fiz algo que não fazia há muito tempo: enchi a cara. Com um dos meus irmãos. Não escolhemos, conscientemente, ficar bêbados, mas escolhemos ser irmãos. Na terceira garrafa de vinho começamos a trocar confidências. Eu contei que o relacionamento que quase me matou começou com um pedido de namoro depois de eu ter sido espancada até desmaiar. Ele me contou que matou um cara quando era adolescente e vivia na rua. Dissemos que sentimos muito e, de fato, sentimos pelo que cada um passou, mas é estranho perceber o quanto o conhecimento da violência, no grau que for, ressoa em nós tanto quanto uma moeda caindo em um poço. É que ela está entranhada em nossos ossos, nos é constitutiva, nos moldou enquanto pessoas. Cultivamos um ódio frio, uma ojeriza que nos faz seguir na direção oposta ao que nos feriu. De alguma forma, sinto que nós transcendemos a dor quando percebemos que não havia uma forma de evitá-la e nos tornamos uno com ela.



Comments


Me acompanhe

© Copyright 2025 - Uma dose de devaneio. Todos os

Direitos Reservados. 

bottom of page