Mãe
- Yilan Ruh
- 22 de ago. de 2024
- 5 min de leitura
TW: narcismo; violência sexual; violência de gênero

Mãe, eu queria que a senhora soubesse que agora que eu entendo muita coisa sobre mim, eu entendo muita coisa sobre você. As feridas não fecharam, mas já não gotejam sangue. A senhora não me deu o suficiente, mas de alguma forma, eu fiz bastar. Eu nunca fui boa em pedir, mas hoje eu entendo que cê ofereceu o seu melhor.
Aprendendo sobre mim, eu aprendi muita coisa sobre você. Ontem eu falei pra minha terapeuta que nunca aceitei esse rótulo patológico de "narcisista" posto sobre você pela minha irmã assim que iniciou na terapia. Acho muito doido como alguns colegas diagnosticam pessoas com quem sequer conversaram. Sei que a sua existência transborda um mero transtorno de personalidade. Você é a sua história, as marcas da sua história e o que escolheu fazer com essas marcas. Finalmente entendi que você não conquistou muita coisa na vida além da maternidade e que é a partir dela que você obtém o seu gozo. Não me ressinto mais quando você atribui as minhas conquistas à você. Em certa medida, até concordo. Se você tivesse me abortado, hoje seria uma pessoa a menos se esforçando pra tornar esse mundo 1% menos miserável.
Eu entendi que quando você brigou comigo no momento da minha vida em que eu estava mais frágil, quando denunciei o estupro, foi o seu modo de dizer que tinha medo de me perder. Eu entendi que você temeu a minha coragem porque eu fiz o que você não teve a coragem de fazer quando foi uma vítima. Você tinha medo de que eu fosse morta pela denúncia, mas não entendeu que eu já tinha morrido com a violência e que lutar pra que não acontecesse com outra seria a única coisa que poderia me trazer de volta à vida.
Eu entendi que você nunca me defendeu porque aprendeu que a passividade era o modo de prevenir violências e que foi por isso que, por tantos anos, eu me esforcei pra agradar todo mundo. Que nunca soube como cuidar de mim porque eu tinha uma independência que você nunca teve e que isso te assustava. Que descarregava seus problemas em cima de mim porque os meus irmãos mais velhos não conseguiam te ouvir sem ficarem irritados e você tinha medo até dos seus próprios filhos. Que elogiava o meu corpo, cada vez mais magro e adoecido pela anorexia e a bulimia, porque achava que isso me protegeria dos olhares masculinos já que você se sentia incapaz de me proteger.
Eu entendi que você plantou inseguranças em mim sobre os meus relacionamentos românticos porque você nunca teve um relacionamento saudável. Que me colocava como burra por não trair e enganar os meus namorados porque valores como fidelidade, lealdade e honestidade nunca fizeram sentido pra você já que nunca te foram oferecidos. Que você nunca olhou uma tarefa de casa ou me mandou estudar pra uma prova porque sabia que não precisava se preocupar comigo, já que eu nunca dei trabalho.
Eu entendi que você disse que eu estava confusa, mas que me amaria assim como continuaria a me amar se eu fosse uma puta, uma ladra ou traficante quando me assumi uma pessoa bissexual porque você mesma nunca aceitou os seus desejos lésbicos. Que você veio de um tempo e lugar que te castrou e que tentou fazer o mesmo comigo porque não conseguia conceber um outro modo de existir como possível. Entendi que a bebida era o seu modo de escapar da realidade porque era assustador olhar para si e se ver como impotente. Que você nunca aceitou se responsabilizar pelos seus fracassos porque não conseguia enfrentar a frustração de não conseguir tentar novamente.
Eu entendi que você nunca foi tão forte quanto eu. O problema é que me moldei ferro, não arame. Quando me envergaram, em minha rigidez, eu quebrei. Eu me moldei a partir da visão que eu tinha do meu pai. Eu cresci embrutecida, adultecida, orientada pelos valores mais tóxicos da masculinidade e sofrendo pela racionalização das minhas emoções. Sempre te amei, mas eu precisei aprender a te respeitar. Sempre te vi como fraca, infantilizada, subalterna, incapaz de cuidar de si ou de outrem. Me enchia de pavor a sua postura passiva quando você deveria ser a matriarca da nossa família. Eu te enfrentava porque queria que você reagisse e me colocasse no meu lugar. Queria que você tivesse coragem de me dar o tapa quando levantava a mão e ameaçava me bater. Que me mandasse calar a boca quando eu questionava as suas ordens. Que brigasse comigo se eu fizesse merda. Em um bimestre eu até tirei notas baixas propositalmente pra saber se você faria algo a respeito. Eu queria que você fosse como eu porque eu morria de medo de ser como você.
Eu entendi tanta coisa sobre você que eu sei que a senhora não entende. Eu sei que a senhora tem medo de se olhar. Sei que cê não me deixa te levar naquele restaurante que faz comida típica do seu estado porque não entende que eu ganho em um dia o que a senhora ganha em uma semana. Que pra uma mulher tão altiva, tão orgulhosa, é humilhante depender de sua filha mais nova. Que a senhora sempre dá toques sobre como deve ser a minha aparência porque sente falta da sua mocidade (e ai de mim se um dia eu cortar o meu cabelo!). Que a senhora fala que não gosta de ler porque não lê bem e isso te constrange. Que fazer o meu doce predileto ou me trazer frutas maduras da feira é a única forma que você sabe de cuidar de mim. Que você não me liga ou manda mensagens todos os dias porque sabe que não precisa se preocupar comigo: eu sei me virar.
Sabe, eu tenho aprendido a ser mais flexível. Dia desses eu até chorei na frente de uma pessoa que eu amo. E tenho aprendido a delegar tarefas, confiando que o outro as faça tão bem quanto eu. E comi um salgado de padaria de café da manhã e ainda arrematei com sobremesa. E assisti um filme besta antes de dormir ao invés de ler. E dormi até mais tarde porque eu tava cansada e com dor. E pensei que eu posso mesmo ser feliz me casando e indo morar em um chalé suíço no interior. Que eu sou mesmo melhor sozinha, mas que tem gente com quem eu sou ainda melhor. Eu tô tirando a armadura, pouco a pouco, mãe. E hoje, eu até fico feliz quando encontro, dentro dela, dentro de mim, um bocadinho de você.
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