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Sobre violência

  • Foto do escritor: Yilan Ruh
    Yilan Ruh
  • 14 de jun. de 2021
  • 2 min de leitura

Na primeira vez em que tocaram o meu corpo sem o meu consentimento, eu não sabia o que era consentir. Sequer sabia que o meu corpo era, de fato, meu. Parecia uma extensão do desejo alheio. Mas, de algum modo, eu sentia a repugnância me cobrindo como um balde de piche. Banhos não eram o bastante para me lavar, e a culpa e o nojo escorriam em forma de sangue. Redenção dolorosa. Eu era só uma menina.

Quando finalmente compreendi o que era violência, aprendi que da minha garganta saía um som que eu poderia usar para vocalizá-la. Era a minha voz. Pedi ajuda. A ajuda nunca chegou. Aprendi a me calar. Aprendi a suportar tudo em silêncio. Minha voz foi ficando mais fraca, mais baixa, até que se atrofiou. Minha garganta arranhava, mas já não saía nenhum som. E quando eu tentava falar, ela inflamava. De algum modo, a dor e a fala sempre estiveram presentes. Não falar implicava em ondas de dor, auto infligidas ou não.

Um pouco mais velha aprendi a vomitar o que sentia. Reter tanto implicava em um grande mal-estar, e desenvolvi, como mecanismo de compensação, o hábito de comer para vomitar toda vez que me sentia cheia. Não era a fome, uma compulsão, ou um desespero, como visto em muitas experiências de transtornos alimentares. Era um desejo de me esvaziar do mundo. Era um cansaço por ter que reter tanto. Eu me fechei de tal modo que sequer sabia chorar... Minha voz, obliterada, escapava em gritos noturnos, e o choro vinha durante o sono.

Eu me apeguei à ideia de que sofri as maiores violências e permaneci viva. Dois raios não caem duas vezes no mesmo lugar. Mas eles caíram, e minha choupana queimou até virar cinzas. Não restou nada para mim, nem mesmo as minhas certezas. E pela primeira vez em anos, eu chorei, não pela mulher violentada, mas pela menina. A mulher gritou e a menina gritou em resposta. E ambas choraram juntas e lamentaram pela desgraça. Voltei a ser criança, voltei a ser menina...

Eu falei o que me aconteceu em voz alta. Eu me permiti, apesar do medo, tornar real o que me aconteceu. O tempo passou e meu corpo, que guarda tudo, já não guarda as evidências físicas das marcas que ele cunhou na minha alma. Sei que ele seguirá em liberdade, mas me sinto liberta também. Já não preciso vomitar o que eu sinto.

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